8º Encontro Cultural - Contributo de João Maria Barcelos "A Saúde na Ilha das Flores - um dos transportes de doentes de outrora"

Até cerca de meados do século passado, as comunicações terrestres na Ilha das Flores eram muito precárias. Algumas freguesias estavam muito isoladas, fazendo-se a sua comunicação entre elas apenas por via marítima ou, para quem tinha boas pernas, a pé, por sinuosos atalhos através dos matos. A freguesia onde nasci, Ponta Delgada, era uma delas. Foi necessário os Franceses necessitarem de boas comunicações para a edificação e a manutenção dos seus Postos de Observação, isto já década de sessenta, para que se abrisse uma estrada alcatroada até aos Cedros, onde terminava a estrada de ligação a Santa Cruz.

Até essa data os transportes eram marítimos, em pequenas lanchas movidas a remos e à vela, mais tarde equipadas com fracos motores, que mal as arrastavam.
Nessa altura não havia tantos doentes como agora, até graças à seleção natural da espécie — os fracos não resistiam à doença e rapidamente morriam, geralmente ainda muito novos. Mas havia, tal como agora, claro, as doenças agudas, muitas delas fulminantes, outras operáveis, tal como a apendicite aguda, por exemplo.

Nessas freguesias, quando alguém adoecia subitamente, com uma apendicite aguda, por exemplo, se o Sol já adormecera e/ou não era possível o seu transporte por mar, era levada até ao Hospital numa espécie de machila — fazendo lembrar a que antigamente se usava na Índia e na África —, às vezes improvisada no momento, a que se chamava “Rede”. 

A Rede era feita com cobertores (ou outro tecido resistente), atados numa vara, quase sempre uma cana grossa de bambu, por ser oca e mais leve, sendo transportada através dos atalhos do Mato por dois homens, um à frente, outro atrás, em passo célere e ritmado. Às vezes iam quatro, para se revezarem, dois a dois, particularmente quando o doente era mais pesado. À Rede, nas Flores também se lhe chamava “Palanca”, nome devido ao facto de se dar o mesmo nome à vara onde se amarravam os cobertores — ‘palanca, com o significado de barrote, tranca, dizem os dicionários ser regionalismo dos Açores, não se ouve no resto do país, mas na Madeira tem o mesmo significado. Por isso, a este tipo de transporte havia quem lhe chamasse “à palanca” — “O pobre Jesé Criqui — Dês le dê Céu! — foi levado à palanca, numa rede, até Santa Cruz mas, coitado, quando chegou ao Hospital já nã tinha tafulho!...”

Como bem se sabe, a apendicite aguda é acompanhada quase sempre de uma inflamação dos tecidos vizinhos do apêndice cecal, da membrana chamada peritoneu, inflamação a que se dá o nome de peritonite, e que causa dores, mais ou menos intensas consoante a gravidade. Ora, acontecia, devido à ingremidade dos atalhos, que o doente ia sofrendo os balanços da rede, que lhe avivavam as dores, e bem cramava e punha as mãos ao alto para que a viagem em breve chegasse a seu termo...

Mas, a Rede, como forma de transporte de pessoas, não foi exclusiva da nossa Ilha, claro. Era utilizada por muitas bandas, até no Brasil, onde senhores e damas se faziam comodamente transportar, às costas de escravos.
Rede de transporte no Brasil
Senhor numa rede transportada por escravos

Mas foi certamente na Madeira, pelas suas exigências orográficas, quando na Ilha havia apenas caminhos e atalhos entre as povoações, os chamados “Caminhos Reais”, que o uso da Rede mais se difundiu, sendo algumas delas verdadeiras obras de arte. Eram as chamadas ‘Redes de luxo’, destinadas ao transporte de turistas. Feitas de um tecido muito resistente, então fabricado na Ilha, chegou até a haver algumas forradas de pele, como ainda se pode admirar numa fotografia do Museu Vicentes do Funchal.

 
Rede de luxo forrada a pele (Museu VICENTES)

A Rede de luxo, diferente da Rede de transporte de doentes, era provida de um toldo e de cortinas, para resguardo do vento e do sol, tendo no eu interior um coxim e um cobertor, para melhor conforto do turista.

Transporte de rede na Madeira


O uso da Rede na Madeira perdurou até ao século XX. O escritor Raul Brandão, quando visitou a Madeira em 1924, escreveu no livrinho intitulado As Ilhas Desconhecidas: “Para viajar no interior da Madeira só há dois processos cómodos — o da rede suspensa por uma vara às costas de dois homens que caminham apegando-se a paus, e o carro de bois. Mas a rede faz sono, o carro é melhor.”
Transporte de Rede na Madeira (Foto Figueiras)
Rede, em 1914 (Foto Perestrellos)
Rede, em avançado século XX

Voltando ao passado da nossa Ilha, contavam-me os mais idosos que, nessas caminhadas de emergência até à Vila, às vezes, no meio do Mato, acontecia o desinfeliz do passageiro calar a cramação. Ao se aperceberem que já se passara para o outro Mundo, voltavam a carregá-lo, invertiam a marcha e levavam-no de volta à freguesia, pois não só seria embaraçoso chegar à Vila com um cadáver, como era maneira de evitar toda a complicada burocracia do Tribunal.

E hoje fala-se em Crise... 
Tempos difíceis eram os de antigamente, onde havia gente que nunca sequer saíra da sua freguesia, também pela sorte de nunca ter tido necessidade de ser transportada numa Rede até ao Hospital...

Desejo a todos os conterrâneos presentes uma boa continuação do Encontro Cultural de 2014, agradecendo à Direção da Associação de Amigos da Ilha das Flores o amável convite para poder contribuir com este modesto texto relacionado este antigo e curioso meio de transporte.

J. M. Soares de Barcelos
10-04-2014

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