8º Encontro Cultural - Contributo de Regina Meireles "Breve nota sobre a Saúde na ilha das Flores"

(As notas referentes aos médicos mais antigos que nasceram ou trabalharam nas Flores, foram cedidas pelo Sr. João António Vieira Gomes e pelo Sr. José Arlindo Trigueiro, reconhecidos investigadores florentinos).

A história da saúde da ilha das Flores reflecte bem a insularidade do Arquipélago e conta-se pela mão de todos aqueles que contrariam ventos e marés numa tentativa de salvar vidas, curar doenças e melhorar a qualidade de vida a todos os que se encontravam na ilha.

Todos se recordarão de marcos emblemáticos como a construção do centro de saúde, a marcante passagem da Base francesa, a construção da pista de aviação e do porto. Houve tempos em que os florentinos nasciam nas Flores e depois deixaram de nascer. Houve ainda um tempo em que até morrer era uma dificuldade: em que os caixões se faziam por medida por um carpinteiro que já devia ter “de olho” as medidas dos mais idosos e enfermos; depois venderam-se caixões em supermercados, até que se construíram as casas funerárias.

Todos estes acontecimentos marcaram profundamente os cuidados de saúde na nossa ilha e as gentes que por eles passaram.

Actualmente nas Flores, existe pelo menos um médico sempre em permanência na ilha, o Centro de Saúde possui uma equipa multidisciplinar e os utentes podem usufruir de consultas médicas em algumas freguesias como Lajes, Fazenda, Fajã Grande e Ponta Delgada. Existem cuidados ao domicílio e dois lares de idosos da Santa casa da Misericórdia. Viver nas Flores, é sem dúvida mais fácil do que foi no passado mas nos dias em que são necessárias evacuações aéreas, os corações ficam apertados e a ilha torna-se novamente uma “prisão”. Felizmente os florentinos têm contado ao longo dos anos com o apoio inquestionável da Força Aérea que tem como nobre missão a busca e salvamento bem como as evacuações médicas. São muitos os que viveram graças à coragem e competência destes profissionais por quem os florentinos sentem uma grande gratidão.

Temos consciência de que garantir uma permanente e eficaz prestação de cuidados de saúde em ilhas como Flores e Corvo não é fácil nem barato mas estes cuidados não se podem medir apenas em números. São um bem essencial e um indicador de desenvolvimento da população. Além disso, cada um poderá expressar o conforto que sente por saber que tem um médico e um hospital por perto ou ainda um avião militar que possa servir de ponte aérea em situações de emergência.

Mas estas breves notas incidem sobre um período longínquo em que a ilha permanecia fechada sobre si mesma por longos períodos e em que só o espírito de missão de alguns médicos e a resiliência de muitos cidadãos anónimos da ilha contribuíram para a protecção e melhoria da saúde comunitária. Cada um deles, à sua maneira, fez toda a diferença para aqueles que sentiram o conforto e o benefício da sua presença.
Estes homens e mulheres fazem parte da nossa história e são parte inegável da açorianidade. Que sirva este Encontro Cultural para os homenagear e também para analisar o caminho que percorremos e, sobretudo para afinarmos o rumo de um futuro que talvez passe pelas novas tecnologias como o cabo de fibra óptica e a telemedicina.
  
O primeiro “médico” que a história menciona na Ilha das Flores foi João Enes, morador na ilha e que foi autorizado por D. Manuel I, por carta de 8 de Junho de 1524 para que pudesse usar “da ciência e arte de cirurgia para todos os nosso reinos e senhorios, por ser idóneo e pertencente para usar e praticar da dita ciência e arte da cirurgia”.
Note-se que um cirurgião da época não tinha qualquer semelhança com a especialidade como a conhecemos hoje. Tratavam-se de indivíduos curiosos e estudiosos dessa área, que não tinham ao seu dispor quase meios nenhuns e que realizavam procedimentos num ambiente sem condições de higiene e sem os fármacos a que estamos habituados (Lembre-se que a penicilina apenas foi descoberta em 1928!). Estes indivíduos eram muitas vezes designados por “sangradores”.
Em finais do sec. XVI, Gaspar Frutuoso refere-se a um outro “cirurgião”, Álvaro Rodrigues a quem tinha pertencido o “pico muito alto” que está junto à Vila de Santa Cruz (Monte das Cruzes), que passara depois a seu filho, Gaspar Rodrigues, acrescentando que “não houve nem há outros mestres na terra nos dois séculos seguintes”.
Existem também referências a dois cirurgiões que terão exercido na ilha: a 4 de Setembro de 1777 era cirurgião em Santa Cruz Manuel Vieira Brasil e, nessa mesma vila residia também, em 1823, António José do Amaral, de 59 anos de idade, cirurgião aprovado por Sua majestade”.

Em 1807, por determinação régia, deslocou-se às Flores o cirurgião João Pedro Soares Freire para vacinar o povo contra a varíola. Esta campanha de vacinação terá durado 180 dias e custado aos Municípios da ilha 270$000 Reis.

A situação da saúde nas Flores melhorou consideravelmente a partir de 1822, altura em que se radicou na ilha o Dr James Mackay, que ficou na memória das gentes da ilha como o “Doutor Inglês” e que até 1874 – data do seu falecimento – se ocupou com eficácia dos cuidados de saúde da ilha inteira.
O Doutor Inglês nasceu afinal na Escócia a 5 de Maio de 1790. Cursou Medicina na Universidade de Edinburgh, foi capitão dos Reais Dragões de sua Majestade e serviu na Guerra Peninsular.
A primeira vez que passou pela ilha das Flores, em 1815, era médico da Corveta “Northumberland”, quando regressava a Londres depois de ter acompanhado Napoleão ao exílio à ilha de Santa Helena, no sul do Atlântico.
Nessa altura grassava uma doença epidémica nas Flores e James Mackay terá consultado todos quanto s a ele recorreram.
Note-se que atendendo ao grau de isolamento a que a ilha estava votada, as epidemias que aí surgiam, deviam-se quase na sua totalidade, a contactos com navios que aí escalavam e que haviam escalado antes outros portos trazendo essas epidemias.
Regressou posteriormente às Flores, em 1822, com o desejo de ali passar o resto da sua vida com a respectiva família. A 30 de Julho de 1825, após várias diligências, obteve a carta régia autorizando o exercício de Medicina e Portugal. O Dr Mackay viveu o resto dos seus dias nas Flores, onde está sepultado (no cemitério da Vila de Santa Cruz) e os seus descendentes contribuíram para obras de grande empreendedorismo na ilha.
No ano de 1843, a freguesia do Lajedo foi atingida por um flagelo de bexigas, que num espaço de 3 a 4 meses, tirou a vida a 18 pessoas.
O contágio deveu-se ao contacto com tripulação de uma galera americana, com um carregamento de sal que no Lajedo aportou com água aberta (antiga expressão utilizada nas Flores na época e que significa “arrombado”) vinda do Porto de Cádiz, no sul de Espanha.
O então Governador Civil da Horta, Vieira Santa Rita entendeu por bem enviar para as Flores um médico.
Em Outubro de 1848, na freguesia de Ponta Delgada, ocorreu outro episódio de bexigas (também chamadas “bexigas loucas” ou “bexigas pretas”), pelo que a Junta Geral do Distrito propôs ao Governo que deslocasse para as Flores um cirurgião da Armada Real.
Entre vários médicos que passaram pela ilha das Flores encontra-se um Oficial ao serviço da saúde da Marinha Portuguesa. Fixou-se na ilha, onde veio a falecer. Trata-se do Doutor Júlio César Cayres Camacho, que tomou posse do cargo de Guarda-Mor da saúde a 4 de Fevereiro de 1887, servindo toda a ilha até à data do seu falecimento, em Abril de 1906.

De Agosto de 1806 a Maio de 1924, a assistência médica em Santa Cruz esteve a cargo do Dr José Jacinto Armas da Silveira, natural desta ilha e que desempenhou com relevo os cargos de facultativo municipal, médico do Hospital e Guarda-Mor de Saúde da ilha, prestando serviço de saúde a toda a ilha.
Foi músico de relevo mesmo no tempo de estudante e Lisboa e dizia-se que tocou nas orquestras dos Teatros nacionais de São Carlos e Dona Maria.
Em 1915, fundou com um grupo de cidadãos a Filarmónica que, mais tarde, tomou o seu nome “Armas da Silveira” na qual participaram pessoas de vários pontos da ilha, com o Maurício António Fraga, das Lajes e Roberto de Mesquita que era primo do Dr Armas da Silveira. Faleceu a 9 de Maio de 1924.
Entre outros médicos florentinos que se distinguiram, destacamos o Dr. Theophilo Ferreira (1840-1894). Nasceu e viveu até aos 16 anos nas Flores. Fez o ensino secundário na Ilha de S. Miguel, onde fez grande amizade com Teófilo de Braga, com quem fundou o jornal “O Meteoro”. Tirou o curso de professor primário e lecionou na Ribeira Grande. Licenciou-se em medicina pela escola médica de Lisboa em 1878.
Também se dedicou à política: foi vereador da Câmara Municipal de Lisboa e deputado pelo círculo da Horta (legislatura de 1890 a 1892. Os seus discursos parlamentares foram considerados os mais notáveis da época.

Dr. Nestor Augusto Xavier de Mesquita (1854-1924) Nasceu na vila de Santa Cruz. Formou-se em medicina e cirurgia pela escola médico cirúrgica de Lisboa em Dezembro de 1884. Exerceu a sua profissão na cidade da Horta.

Dr. José de Freitas Pimentel (1894-1920) Nasceu na freguesia da Fazenda das Lajes. Terminou o curso de medicina em 1917 com nota máxima e apenas 23 anos de idade. Em Abril de 1919 regressou às Flores, tendo aberto consultório na vila das Lajes. Em Setembro do mesmo ano abriu consultório na cidade da Horta, onde foi muito acarinhado pelos doentes. Foi chamado à ilha do Pico em Dezembro porque havia um surto peste pneumónica e todos os seus colegas haviam recusado dar assistência aos doentes por ser uma epidemia extremamente contagiosa. Por querer ajudar o próximo faleceu nessa mesma ilha, com 25 anos, no dia 1 de janeiro de 1920.

Dr. António de Freitas Pimentel (1901-1981). Irmão do Dr. José de Freitas Pimentel. Nasceu na freguesia da Fazenda das Lajes. Terminou o curso em 1929 pela universidade de medicina de Lisboa. Radicou-se na cidade da Horta com a sua esposa Dr.ª Maria Francisca, também cirurgiã. Ambos trataram centenas de florentinos de forma gratuita. Ao longo da sua vida visitou regularmente as Flores, vendo sempre muitos doentes. Dedicou-se também à política e exerceu importantes cargos, destacando-se o período em que foi foi Governador Civil do Distrito da Horta.

Dr. Horácio Carvalho Flores (1931- 2012)
Nasceu na Vila de Santa Cruz. Frequentou a universidade de Coimbra durante os 3 primeiros anos de curso e os restantes na universidade de Lisboa. Terminou o curso em 1958 e especializou-se em cirurgia.  Foi Director do Serviço de Cirurgia do Hospital de Beja e Director do mesmo Hospital.

Para finalizar, não poderia deixar de referir duas pessoas de um passado bem mais recente que se distinguiram no apoio à população da ilha das Flores e também do Corvo, no âmbito dos cuidados de saúde. Trata-se de Maria Antónia de Freitas Fraga, conhecida por Menina Antónia e o Mestre José Augusto.

Maria Antónia de Freitas Fraga (1918-1996)
Nasceu na vila das Lajes das Flores. Descendente de importantes famílias florentinas no sector empresarial. O pai Maurício António de Fraga fundador duma empresa com o seu nome, que foi na primeira metade do Século XX uma das maiores e mais importantes empresas das Flores. A mãe, Irene Jerónimo de Freitas, era neta de António de Freitas (conhecido por “pirata do Mosteiro”), fundador da Igreja e do Passal da freguesia do Mosteiro depois de ter voltado da China para onde partira clandestino e onde acumulou avultada fortuna como armador.
Maria Antónia Fraga concluiu com distinção a instrução primária na escola das Lajes. No ano de 1932 foi para Lisboa para continuar a estudar. No Liceu Pedro Nunes concluiu o curso secundário, matriculando-se seguidamente, na Faculdade de Farmácia de Lisboa, tornando-se numa das primeiras mulheres das Flores a frequentar uma universidade.
Por motivos de saúde teve de regressar às Flores no final do 4º ano. Não ter terminado o curso foi uma mágoa que a acompanhou durante a vida inteira.
Como diz o povo há males que vêm por bem, porque Maria Antónia abriu uma drogaria na vila das Lajes num período de grandes carências financeiras, com a inexistência total de comparticipações oficiais de medicamentos. Aos poucos foi percebendo a quantidade de pessoas que não tinha o mínimo de possibilidades financeiras para a aquisição de fármacos, e tornou-se então no anjo da guarda dos pobres, oferecendo medicamentos, medindo tensões, aplicando injecções, ajudando as crianças a nascer e confortando as famílias enlutadas. Assim era vê-la a deslocar-se a grandes distâncias, quase sempre a pé, indo de casa em casa, nas Lajes, Fazenda, Lomba, chegando a ir ao Mosteiro e ao Lajedo.
Conhecida carinhosamente por “Menina Antónia“, pelo facto de não ter casado, Maria Antónia Fraga foi médica, enfermeira, conselheira, amiga, benemérita e merece um espaço muito importante nas páginas da história da saúde da Ilha das Flores e na nossa memória colectiva.

Mestre José Augusto (1028 – 2006)
No dia 26 de Outubro de 1928 na Vila de Santa Cruz das Flores nasceu José Augusto Lopes. Com catorze anos de idade fixou residência na Vila das Lajes e aos quinze anos, já atravessava o canal Flores – Corvo.
Ao longo da sua vida adquiriu mais de duas dezenas de embarcações.
Trabalhou na baleação, na pesca e nas cargas e descargas de navios.
Com a chegada dos Franceses às Flores em 1964, o Mestre José Augusto voltou a fixar residência em Santa Cruz, uma vez que todas as cargas respeitantes à base seriam descarregadas nesse porto. O negócio prosperou permitindo-lhe desenvolver a sua frota de embarcações e criar diversos postos de trabalho que contribuíram para o crescimento económico da ilha ao longo de muitos anos.
Transportou durante dezenas de anos correio, carga, e milhares de passageiros entre as Flores e o Corvo. Nas suas lanchas, passaram as mais altas individualidades da vida Portuguesa e Açoriana.
Mas o Mestre José Augusto marcou realmente a diferença,no Grupo Ocidental, ao arriscar muitas vezes a sua vida para salvar outras, a caminho do Centro de Saúde das Flores, especialmente no tempo em que não havia médico no Corvo e a pista de aviação daquela Ilha não passava de um sonho.
Pelo esforço, coragem e riscos por que passou nessas viagens, foi condecorado em 10 de Junho de 1994 pelo Sr. Presidente da República Dr. Mário Soares, com o grau de oficial da ordem de mérito.
Este verdadeiro lobo-do-mar, partiu a 16 de Dezembro de 2006 mas ainda está bem presente na memória das gentes do Grupo ocidental.

Para concluir, pode-se dizer que actualmente os florentinos beneficiam de ligações aéreas diárias e de um sistema regional de saúde que permite responder, com mais ou menos celeridade, às suas necessidades de saúde. A ilha está mais aberta ao mundo do que nunca mas a doença é e será sempre uma fragilidade humana, por isso aproveito para me despedir homenageando a Associação Amigos da Ilha das Flores, que há 11 anos desempenha uma nobre missão ao acolher os doentes carenciados, deslocados a São Miguel por motivos de saúde, funcionando como um “pedacinho de casa”, quando dela mais se precisa.

Um bem-haja a todos,

Regina Meireles
Abril de 2014

Sem comentários: