Intervenção de Herberto Gomes na apresentação do livro "A Renúncia" de José Garcia Costa



"No lançamento d’«A Renúncia», do José da Costa.
Boa noite, quero antes de mais agradecer ao José da Costa o convite para participar neste lançamento do seu primeiro romance. Um convite que me honra e ao mesmo tempo me deixa um pouco «desconfortável» pois nunca me vi neste papel.
Como ponto prévio quero deixar claro que estou aqui porque sou amigo do José da Costa, e já agora porque gosto muito das Flores, onde vivi um ano, e porque me sinto muito bem sempre que venho a esta casa.
Quando o José da Costa me convidou pedi-lhe alguns dados biográficos e não estava à espera de me surpreender tanto com o seu percurso de vida, isto apesar de termos sido colegas no liceu da Horta no final dos anos 70 e dos nossos percursos «quase se terem cruzado» muito mais vezes.
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Comecemos então pela apresentação do autor.
Primeiro acho que é importante dizer que o Zé, é 100% florentino pelo coração e 50% florentino pelo ADN, pois nasceu na ilha azul, a cinco dias do Natal de 1959, porque na altura a mãe natural daquela ilha estava lá a dar escola.
Com apenas 9 meses embarcou para as Flores e foi viver para o Mosteiro onde a mãe tinha sido colocada como regente escolar.
O Zé acompanhava a mãe quando ela ia para a escola, por isso diz, com graça e com toda a propriedade, que a sua frequência escolar se iniciou ainda antes de saber andar ou falar.
Não admira que tenha começado a ler e escrever muito cedo (apenas com 4 ou 5 anos).                                                                               
Como o Zé fosse pequeno e o quadro demasiado alto para ele o pai decidiu cortar o mal pela raíz:  foi à escola …e serrou os pés do quadro para que ele pudesse escrever…
E eis como um gesto de pura carpintaria e amor paternal pode muito bem ter despoletado precocemente a veia literária do nosso amigo.
O gosto pela leitura, esse, foi marcado pelas idas à biblioteca itinerante da Calouste Gulbenkian que ia de freguesia em freguesia, de 15 em 15 dias. Uma periodicidade que no caso do nosso amigo revelava um claro desajuste entre a oferta e a procura, pois creio não me enganar se disser que ele num abrir e fechar de olhos dava cabo do stock, que salvo erro era de 5 livros por cada leitor.
Aos 10 anos, já com muitos livros na bagagem, o Zé emigrou para o Canadá embora tivesse regressado ao Mosteiro passado pouco mais de um ano.
Frequentou então o ciclo preparatório no ensino particular, nas Lajes, com o Padre Luís.
Ficava hospedado na vila e com apenas 12 anos já só ia a casa ao fim de semana (porque apesar de ficar a 10km…não havia transportes)
Em 1974, foi estudar para a Horta, onde frequentou o Liceu até ao sétimo ano, o antigo curso complementar dos Liceus, na área de letras. Foi aí que fomos colegas, o que não tem nada de extraordinário, até porque somos quase da mesma idade.
O que é verdadeiramente extraordinário é o facto do Zé ter sido praticamente colega…da mãe… que como já vimos era regente escolar mas que se viu obrigada na altura a voltar estudar para continuar a lecionar .                                                                                   
Quando acabou o liceu o Zé foi dar aulas (de português e inglês)  na escola preparatória de Santa Cruz e por pouco não fomos colegas de novo, desta vez como professores, já que também passei por lá.
Em 1980 foi para a tropa , primeiro para S.Miguel, por engano, e depois, como deveria ter acontecido logo, foi para Mafra para o curso de oficiais. E mais uma vez por muito pouco não fomos colegas, agora na tropa, já que também passei episodicamente por Mafra.
Depois da tropa ainda deu aulas de inglês nas Lajes do Pico e mais uma vez estivemos quase a ser colegas, já que um pouco mais tarde também lecionei nessa escola, curiosamente a mesma disciplina. Sei que isto já começa a soar a perseguição, mas juro que foi a última vez que os nossos percursos «quase se cruzaram».
A partir daí passou a ser funcionário da CGD ( profissão que continua a desempenhar) ,primeiro em Santa Cruz das Flores, tendo chegado a responsável pela agência, depois na Horta e finalmente na Madalena do Pico, terra Natal da sua mulher. Nessa altura já era pai da Fabiana e da Soraia. (que está ali a tirar fotografias).
Pelo meio da sua atividade como bancário ainda recusou um convite do PSD que o podia ter levado a ocupar o lugar de deputado na ALRA pelas Flores , mas aceitaria mais tarde candidatar-se  a presidente da Ass. Municipal de Santa Cruz também pelo PSD, cargo para que seria eleito.
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O José diz que lê compulsivamente e prefere um bom livro a um bom filme. Gosta de muitos e diversos autores, entre eles  Eça de Queirós (de quem falarei com alguma insistência mais à frente), José Rodrigues dos Santos, Miguel Sousa Tavares, Dias de Melo,Hemingway e Agatha Christie, entre muitos outros.
Para além do tempo que dedica à leitura ainda arranja espaço para as suas crónicas no Jornal do Pico, colaboração que vem mantendo desde a sua fundação  em Abril de 2004.
Espera que este romance - “A Renúncia” - seja o primeiro de  muitos outros  se Deus lhe  der vida e saúde.
Diz que não é, nem pretende, ser uma obra-prima pois não tem preparação para tal,mas garante que foi escrito com o coração e com a imaginação.    
Diz ainda o nosso autor que não fez qualquer esboço da história nem sequer planeou o fim … uma ausência de «projeto de arquitetura» que levou a uma derrapagem na obra; o livro chegou a estar parado durante semanas, à procura de um rumo a dar à história.
Nada que deva preocupar muito um jovem escritor, já que este mal do chamado «bloqueio» atinge até os mais experientes. Seria caso para dizer que escritor que nunca teve um bloqueio não é escritor.
Ainda ontem ouvi na TV João Tordo, um dos valores da nova geração de escritores, dizer que passara por um longo período em que, pura e simplesmente, não conseguia escrever. Isto, já depois de vencer o Prémio Saramago. Diz que passava o tempo no sofá a empanturrar-se com batatas fritas, pizzas e doses cavalares da série «Doctor House». Até que um dia pegou nesse comportamento obsessivo/ depressivo para construir                     um personagem. E foi assim que começou a escrever o «Bom Inverno», livro que viria a ser um «best seller». 
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Quando o José da Costa me convidou para participar na apresentação do seu romance «A Renúncia»… pensei se não deveria ser eu mesmo a renunciar… Porque não sou crítico literário, nem missionário, nem juiz.
Digo isto lembrando Machado de Assis que afirmava ser o «critico literário uma espécie de missionário que dirá a verdade, e nada mais que a verdade, sobre determinada obra literária.
E que o papel do crítico é portar-se como um juiz, ou seja deve julgar o valor da obra literária»
 Para além de não ser crítico literário (nem missionário, nem juiz), tive que dizer ao José a verdade e nada mais que a verdade:  ainda não tinha lido o livro. Confessei esta verdade, um pouco envergonhado, na esperança do José não me ajuizar mal. E acho que estou perdoado.
Mesmo assim, acrescento agora em minha legítima defesa que  sabia da existência do livro pelas notícias, mas ainda não me tinha deparado com ele em nenhuma livraria; o facto de ter em casa muitos livros em lista de espera e o facto do livro do José ser assim para o grandinho (480 páginas) foram  também razões para ir adiando essa leitura…Sem desprimor para o José, a verdade é que já muito raramente leio livros com tantas páginas…
Já fui um leitor inveterado, e compulsivo como ele,…mas hoje para mal dos meus pecados sou muito mais «teledependente» e por isso leio bastante menos livros do que no tempo da saudosa e itinerante biblioteca da Calouste Gulbenkian.               
Como dizia, eu não sou crítico literário e não vou por isso armar-me em crítico literário…
Mas já é tempo de falar sobre o romance de estreia do José da Costa porque afinal foi esse o desafio que me foi lançado e que eu, temerariamente, aceitei.
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Mal soube do romance do José e do seu enredo pensei de imediato no «Crime do padre Amaro». Devorei essa obra de Eça de Queirós enquanto estudante no liceu.
Li-o muito mais avidamente do que haveria de ler, por obrigação curricular, «Os Maias» do mesmo Eça.
A primeira questão que se poderia colocar de imediato era se haveria, mesmo que remotamente, algum plágio.                                                                       
Eu não estava a imaginar o José nessa prática, por isso nem foi preciso chegar ao fim do seu romance para perceber que essa hipótese não se colocava de todo.                                         
Acredito que antes de Eça muitos escreveram e depois do José  muitos outros hão-de escrever sobre as provações e privações a que estão sujeitos os padres.
Isto, claro está, se perdurar a imposição do celibato para quem quer abraçar a vocação sacerdotal, impedindo assim os padres de também abraçarem - mais ou menos afetuosamente -  as mulheres, ou os homens, se não quisermos ser homofóbicos.
Para encerrar o capítulo do plágio, que como já vimos é crime que não podemos imputar ao José da Costa ,                   
gostaria apenas  - a título de curiosidade - de frisar que o próprio Eça com o seu Padre Amaro, foi acusado de tal crime!
Machado de Assis acusou-o de plagiar Émile Zola que escreveu «La Faute de l'abbé Mouret», (A culpa do abade Mouret) obra que trata também da vida de um padre dividido entre a sua vocação religiosa e o amor de uma mulher.
Há no entanto um pequenino pormenor que deita por terra a tese de Machado de Assis: é que o livro de Zola surge depois do «Crime do Padre Amaro» …
Curiosamente esse foi o primeiro romance de Eça de Queirós [já que «O mistério da estrada de Sintra» tinha sido escrito a quatro mãos, com Ramalho Ortigão] e «A Renúncia» é também o primeiro romance do José da Costa. Quem sabe se esta coincidência não será premonitória para uma longa e profícua atividade literária.
Em ambos os livros se fala dos desvios de jovens padres do caminho de Deus, e das leis da santa madre igreja… mas tirando a atração proibida pelo sexo oposto não vislumbrei mais nenhuma semelhança entre a paixão do padre Joaquim pela Maria do Rosário e a paixão do padre Amaro pela Amélia.
Como sabem também, o «Crime do Padre Amaro» já teve algumas adaptações ao cinema…E quem sabe o mesmo não acontecerá um dia também à «Renúncia», pois a última coisa a que devemos renunciar é ao sonho e à ambição.
Ora, a ambição do José da Costa foi escrever um romance, e depois de ter sido bem sucedido, manterá a ambição e o sonho de escrever muitos mais.                                                                       
Com o seu primeiro romance,  José da Costa não procura criar qualquer polémica ou afrontar a igreja ou qualquer outra entidade.
Já a obra de Eça de Queirós gerou, na altura, muita polémica ao criticar ferozmente o clero e ao abordar também outro tabu da época: a sexualidade.
Tal provocou  grandes protestos por parte da Igreja Católica, não só em Portugal, mas até no Vaticano.                                                                                                     
Intenções e premeditações à parte, é preciso não esquecer também que o «Crime do Padre Amaro»  foi escrito nos finais do século XIX e a «Renúncia»  é já do século XXI, tendo a primeira edição saído apenas no ano passado.                                                                  
Diz-se que Eça de Queirós terá aproveitado o facto de ser nomeado administrador do concelho de Leiria para aí durante seis meses, conhecer e estudar aquele que seria o cenário de
«O Crime do Padre Amaro».
Já o nosso autor escolheu como cenário uma aldeia algures no norte do país onde a ação se desenrola  presumivelmente na década de 60 do século passado. Ora não tendo residido nessa paróquia que acolhe o padre Joaquim, imaginou-a à semelhança do mundo que conhece melhor, que é o nosso mundo rural açoriano, e não é por isso que a história deixa de ser verosímil.
Por cá, tal como no resto do país profundo e rural, e antes de Abril ser mês de cravos, a trindade constituída pelo regedor, professor e padre asfixiava o quotidiano das populações isoladas e maioritariamente iletradas…                                                      
Na minha leitura [e o meu amigo perdoar-me-á se a achar demasiado enviesada],na minha leitura, dizia, esta opção de deslocalizar o cenário da intriga para longe da nossa porta pode ser justificada pelo facto de quase todos nós conhecermos, de forma mais ou menos consumada, histórias de padres que tiveram alguma dificuldade em renunciar às tentações de um corpo … para além do litúrgico corpo de Cristo. 
Se o cenário da «Renúncia» se restringisse aos horizontes do Mosteiro, na ilha das Flores , por exemplo, não haveria de faltar quem visse no padre Joaquim, criado pelo José da Costa, um personagem da vida real que tivesse numa determinada época, mais ou menos longínqua, sucumbido a um rabo de saia.
[O novo Papa, Francisco, num livro que foi lançado ainda ontem em Lisboa, confessa que enquanto seminarista ficou deslumbrado com uma rapariga - pela sua beleza e pela sua «luz intelectual»…ficou de tal modo baralhado (ou encandeado) que não conseguiu rezar durante uma semana, porque sempre que o ia fazer a rapariga surgia na sua cabeça].    
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Não faço a  mínima ideia se estes foram assuntos que alguma vez tenham atormentado o padre Nunes da Rosa.
O que sei é que Nunes da Rosa nasceu na Califórnia em 1871, curiosamente  no mesmo ano em que nascia nas Flores um futuro colega do liceu da Horta, de nome Roberto de Mesquita, e, mais uma curiosidade, no mesmo ano em que Eça de Queirós escrevia «O crime do padre Amaro» !?
Mas tal como José da Costa não é faialense pelo facto de ter nascido no Faial, Nunes da Rosa também não é             
americano por ter nascido na América. É sem dúvida açoriano e picoense pois era filho de pais da ilha montanha que regressaram ao Pico, quando ele tinha apenas 5 anos.
A minha referência a Nunes da Rosa tem a ver com o facto de ele ter iniciado a sua vida como sacerdote aos 22 anos no Mosteiro (entre 1893-1896) e de ter sido também um escritor. Um contista de reconhecidos méritos que escreveu «Pastorais do  Mosteiro» e «Gente das Ilhas».
Revisito Nunes da Rosa também  como pretexto para referir mais esta coincidência:    
José da Costa estreou-se nas lides literárias em 2001 com um conto  - «Mero a Caso» - , tendo sido incentivado  a tal pelo escritor picoense , Dias de Melo…                                        
Esse conto – que relata uma história passada na freguesia do Mosteiro, numa mistura de ficção e realidade  era para ter inaugurado, mais precocemente, o seu percurso de escritor, mas como reconhece o seu autor não passou, então, de uma aventura.
Ora a dura realidade dos candidatos a escritores é que um livro não nasce apenas da inspiração. É preciso também alguma …transpiração.
Recentemente  participei num workshop de escrita criativa e retive um conselho que pode servir para todos os que alimentam o sonho de escrever:
«Trabalha…e quando a inspiração chegar há-de encontrar-te a trabalhar».                                                                                          
Estou certo que o José da Costa trabalhou bastante para criar esta obra.
Estou certo também que ao escrever este romance fez uma auto-aprendizagem sobre a escrita e que por isso o próximo romance será melhor que o primeiro…e o terceiro melhor que o segundo, e assim sucessivamente.
Seja como for o José da Costa já fez o que eu - e muitos de nós, presumo - sonhamos fazer um dia: escrever um livro. Uma tarefa que se pode revelar penosa, mas que ao mesmo tempo pode ser fonte de prazer. E que prazer!
Em ‘Um Amor Feliz’ David Mourão-Ferreira, falava assim sobre a Maravilha que Deve Ser Escrever um Livro :
«a invenção dentro da memória;
a memória dentro da invenção;
e toda essa cavalgada de uma grande fuga,
todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadas, com a feminina multidão das palavras:
as que se entregam, as que se esquivam;
as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar;
as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver,  assim proporcionando - antes de se evaporarem -  as horas supremas de um amor feliz.
Não há matéria mais carnalmente incorpórea;
nem outra mais disposta a, por amor, ser fecundada.
Como se pode interpretar de outro modo
esse velho lugar-comum de
«ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro»?                                          
Ora o José da Costa já foi pai duas vezes, já plantou não uma mas várias árvores e já escreveu não um mas dois livros.
Só não sei se já cumpriu a variante açoriana desse lugar comum da plena realização do homem, criada pelo Victor Rui Dores:
Ler ‘Mau Tempo no Canal’, subir a montanha do Pico e descer a furna do enxofre?
Mas ainda vai muito a tempo de fazer tudo isso e de continuar a escrever mais romances.
Espero que o faça, desde que isso o faça feliz e felizes os seus leitores. Por mim, prometo ser um leitor mais atento  quando sair o novo romance.
E peço desculpa a todos pela minha fraca prestação como comentador, mas é óbvio que a culpa não é minha mas do José da Costa; é que, como dizia Camus, quem escreve assim de um modo tão claro tem leitores e não comentadores. 
Termino, esperando não vos ter maçado muito, e não ter cometido o pecado daqueles oradores que, como alguém dizia, nos dão em comprimento aquilo que lhes falta em profundidade. Sei que não fui muito profundo, espero não ter sido muito comprido.
Muito obrigado…e parabéns ao Zé da Costa".

Herberto Gomes                              
P.Delgada , 20 de Abril de 2013                                                                                            

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